Nem feliz, nem triste

Não sabia onde procurar a felicidade; tampouco, se deveria ou a merecia. Será que me escaparia por entre os dedos como a água do mar que eu tentava aprisionar na palma da mão?

Tinha muitas dúvidas, nenhuma resposta e uma única certeza: eu não era feliz e sabia, numa literal inversão do famoso dito popular. Se a felicidade não era para mim, só me restava aceitar o destino.

Porque não era feliz, deveria ser necessariamente triste? No labirinto das emoções em que me perdia, tinha a sorte de não ter achado também a saída para a tristeza.

Eu era um rosto incógnito no vai e vem frenético da cidade. Mais um na multidão, como qualquer pedestre daqueles que atravessam as ruas de Tóquio.

Jamais perceberiam se eu sorrisse ou chorasse, porque gozava da mediocridade que a apatia me conferia. Sem a pretensão de ser alguém, eu era um ninguém conformado, nem feliz, nem triste.

Imagem: Happiness and sadness of life (2020), de Purvasha Roy

Você tem que contar minha história

Férias. Depois de quase três anos de pesquisa e escrita tão intensas quanto penosas, tinha finalmente entregado a primeira versão do romance que a editora encomendara e para o qual me dera um bom adiantamento. Agora que o texto estava nas mãos do editor, que – pelos meus cálculos – deveria levar cerca de um mês para me devolver com suas observações, decidi tirar um tempo para descansar e não pensar em nada.

Aluguei uma casa em Paraty. Era bem pequena, mas parecia muito confortável e ficava a poucas quadras da rua principal. O trajeto seria cumprido facilmente a pé, o que me permitiria caminhar tranquilamente pela cidade observando os casarões históricos. Mas o que mais me atraiu foi a rede posta na varanda. Imaginei passar tardes de pura preguiça ali, na companhia de bons livros, que se acumularam na mesinha de cabeceira enquanto eu sofria para escrever o romance de encomenda, e do canto dos pássaros.

Pensava no prazer de não ter obrigações a cumprir e preocupações com prazos enquanto o ônibus seguia viagem. Olhava a paisagem pela janela. Distraído pelas luzinhas que começavam a se acender no cair da tarde, não percebi quando uma mulher que não me lembro de ter visto embarcar se sentou ao meu lado e interrompeu o silêncio:

— Você tem que contar minha história.

Não era um pedido. Não era um desejo. Era uma ordem. Até então, eu nada sabia dela. Via a cor de seus olhos, os cabelos presos num rabo de cavalo e a pele morena. A roupa despojada contrastava com o tom de voz assertivo com que afirmou que eu teria que contar sua história. Todo o resto era um enorme mistério. Quem era aquela mulher?

Diante do meu espanto e da minha mudez, repetiu a única frase que dissera. Queria confirmar se eu havia escutado, ou apenas garantir a clareza da mensagem. Não esperou que eu respondesse para seguir adiante, desandou a falar. Os relatos eram ricos em detalhes e, por vezes, voltava neles para acrescentar mais um ponto. Encurralado no canto do ônibus, eu me esforçava para guardar na memória tudo o que ela me dizia.

Parecia satisfeita em ter me encontrado e contar sua história; queria que eu a eternizasse de alguma maneira. Não demonstrou qualquer preocupação em estar incomodando os outros passageiros com aquele falatório sem fim. Tampouco se importou quando o ônibus chegou ao destino. Desceu comigo e me seguiu até a casa alugada. Percebi, no mesmo instante, que aquela personagem me acompanharia onde quer que eu fosse.

Imagem: Fantasy girl books, de Willgard Krause

Chamada

Meu primeiro dia na escola em Roma.

Andrea não foi à aula.

Daniele dormia na última carteira.

Emanuele respondeu com entusiasmo.

Gabriele driblava o sono.

Michele ainda estava de licença médica.

Simone engrossou a voz para dizer presente.

A chamada chegou ao fim, mas não dissipou minha dúvida: eram os italianos que tinham nome de menina ou as brasileiras que tinham nome de menino?

Imagem: In the classroom (1886), de Jean-Paul Louis Martin des Amoignes (1850-1925)

Quero ser Elena Ferrante

Quero ser Elena Ferrante, um mistério literário indecifrável. Quero que leiam minhas obras pelo que elas são, descontaminadas das imperfeições do autor. Quero me descolar das letras, separar criador e criatura, sem deixar qualquer pista nas entrelinhas. Quero ser mais um anônimo na multidão que passa apressada pelas ruas de Nápoles, de Tóquio ou de São Paulo. Quero uma vida ordinária, flanar pela feira escolhendo legumes e peixes frescos, barganhar o preço com o dono da banca, provar as frutas da estação. Quero o direito a ter um nome simples e banal, e não arrastar o peso de um sobrenome famoso. Quero não ter de corresponder a nenhuma expectativa que não seja a minha, nem prestar contas do que não contratei. Quero me olhar no espelho e me ver de verdade, sem refletir o que esperam de mim. Quero a infinita liberdade de ser quem eu quiser. Ou de não ser.

Imagem: Le faux miroir (Paris, 1929), de René Magritte (1898-1967)

Big bang

Senti o suor frio percorrer as costas, uma gota gelada descendo vértebra por vértebra até o cóccix. De tão perto, os olhos eram incapazes de fechar o foco, mas eu não tinha dúvida: havia uma arma apontada para a minha testa. Não passou um filme, nem qualquer outro pensamento pela cabeça que não fosse a certeza de que morreria em breve. Questão de segundos, talvez.

Teria tempo de ouvir o som do tiro, de sentir dor ou seria uma morte instantânea? Um disparo daquela distância explodiria meus miolos. Ossos, músculos, veias… Tudo se transformaria em uma massa amorfa embebida em sangue voando pelos ares. Antes mesmo de acontecer, eu já conseguia sentir meu big bang particular.

A minha vida não dependia mais de mim. As escolhas que fiz, as decisões que tomei, os caminhos de que abdiquei, as palavras que disse, e também as que deixei de dizer, nada disso importava. Então, morrer era assim: estar vivo e, de repente, já não estar? Ouvi um estalo. E, então, um silêncio absoluto.

Imagem: Big bang (2022), de Helena Monniello