Mar de inverno

De que adianta os pés irem adiante
se não sabem para onde vão?
Um passo depois do outro,
pegadas desaparecem na areia.

Ondas arredias quebram na beira,
espalham espuma branca
e formam uma bruma úmida
que se espraia no vento.

Sem visita no inverno,
o mar é hostil:
choca-se contra as pedras,
engole a faixa de areia.

O ar gelado invade o pulmão,
a maresia percorre as veias
até chegar ao coração:
procura-se sol.

Imagem: Winter sea, de Wendy Richards

Chamada

Meu primeiro dia na escola em Roma.

Andrea não foi à aula.

Daniele dormia na última carteira.

Emanuele respondeu com entusiasmo.

Gabriele driblava o sono.

Michele ainda estava de licença médica.

Simone engrossou a voz para dizer presente.

A chamada chegou ao fim, mas não dissipou minha dúvida: eram os italianos que tinham nome de menina ou as brasileiras que tinham nome de menino?

Imagem: In the classroom (1886), de Jean-Paul Louis Martin des Amoignes (1850-1925)

O mistério da escrita

Escrever guarda um mistério que não consigo decifrar. Raras são as vezes em que sei como vou terminar, mas os inícios se parecem todos: uma primeira frase se deita na página e espera a companhia das subsequentes. Uma vai puxando a outra e o texto toma forma, nem sempre de maneira consciente.

Não estabeleci um método, mas um hábito, que vale apenas para textos curtos. Não arriscaria escrever um romance em fluxo, sem um bom mapa de personagens e situações. Em escritos menores, que formam a grande maioria do meu acervo, corrigir inconsistências e eventuais desvios de rota é muito mais simples.

A consciência vem depois da criatividade. Primeiro, deixo a inspiração fluir sem interrupções ou sobressaltos (vai que ela some). Depois é que entra o trabalho de reler, organizar e lapidar. São frequentemente mais extensos os processos de reescrita, mas menos angustiantes do que ter diante de si uma página em branco.

Há escritores que não fazem qualquer revisão. Diz-se que Clarice Lispector era assim: ou bem entregava o que havia escrito, ou nunca daria a obra por acabada. Dou razão a ela. Um texto jamais se esgota, o que termina é o prazo para entregá-lo. Este, por exemplo, fica por aqui porque já é domingo, dia da publicação. O próximo ainda é um mistério…

Imagem: fotógrafo não identificado, Acervo Clarice Lispector/IMS

Passageiros

Abri mão de ter carro há quase quatro anos. Sinto falta de dirigir, embora o trânsito não seja nada convidativo. Passei a usar transporte público em praticamente todos os deslocamentos que faço, privilegiado por morar em uma região bem servida de modais: uma estação de metrô e um leque robusto de linhas de ônibus para as direções que preciso na porta de casa. No Rio de Janeiro, o que deveria ser regra – garantir o direito de ir e vir dos cidadãos – beira o luxo.

Reparei, dia desses, um aumento expressivo no número de motoristas mulheres nos ônibus, uma inovação tardia mais do que bem-vinda. Como são maioria na população, a lógica deveria ser replicada também nos postos de trabalho. Depois, tenho a impressão de que as mulheres dirigem melhor do que os homens, porque são mais prudentes e veem o carro como ele é: um meio de locomoção, e não um instrumento de demonstração de poder.

Mais dia, menos dia, apareceria uma exceção para a regra imaginada por mim. Aconteceu nesta semana. Embarquei no ônibus satisfeito ao ver uma motorista ao volante. Ou melhor, triplamente satisfeito, porque o ar-condicionado estava em perfeito funcionamento (uma raridade nos últimos tempos) e havia lugar disponível para sentar.

Acomodado na parte dianteira, próximo à roleta, conseguia ver com clareza os movimentos da motorista. Conduzia a uma velocidade condizente com o trânsito, parava exatamente em frente aos pontos (o que também deveria ser regra) e esperava os passageiros – sobretudo os mais idosos – se sentarem antes de arrancar com o ônibus. Gabaritava com louvor um teste pelo qual não sabia estar passando quando o telefone tocou.

Ela não hesitou: apertou o botão e atendeu a chamada de vídeo da irmã, que também estava ao volante (Eu disse que a minha posição era privilegiada). Passou uns dez minutos na ligação sem o menor constrangimento: segurava o celular com a mão que deveria estar livre para passar as marchas e falava alto. Nenhuma preocupação em esconder a imprudência que cometia.

Além de mim, outros passageiros também se incomodaram. Ninguém, porém, ousou reclamar. Nunca é simples decidir sobre interferir em uma situação deste tipo. Ao perigo de acrescentar uma nova camada de distração para a motorista, soma-se uma possível reação intempestiva de quem tem a vida de tanta gente nas mãos.

Quando desci do ônibus, ela ainda falava animadamente sobre os planos do churrasco de aniversário do afilhado ao telefone. Agradeci por ter chegado são e salvo e desejei que os outros passageiros tivessem a mesma sorte que eu, sobretudo porque o restante do caminho era uma sucessão de curvas bastante fechadas.

Imagem: Muni Bus Interior, de Nathaniel J. Bice