Revista Masticadores

“Você já tentou respirar debaixo d’água? Sereia, eu fazia da piscina o fundo do mar. Sentava-me no chão por longos segundos, quase um minuto, e ficava imóvel observando formas distorcidas ao redor, inventando peixes, corais, tesouros e navios naufragados. Não soltava uma bolha de ar sequer, porque não soltam bolhas de ar as sereias que são de verdade.”

Pedro Rabello

Fui convidado, mais uma vez, a colaborar com a Masticadores, uma revista global que tem um braço brasileiro. Como recusar o convite da editora – e excelente escritora – Miriam Costa? Aceitei, claro! E o texto (cujo trecho inicial está acima) foi publicado nesta reta final de 2022.

Deixo abaixo os links para minhas duas colaborações:

Debaixo d’água – conto publicado no dia 28/12/2022
Era uma vez – poesia publicada no dia 01/06/2022

Foto: Blue swimming pool with water (2021), de Clark Tai

Então é Natal

Querido Papai Noel,

Faz tempo que não lhe escrevo. Vinte anos, quase trinta? Até perdi a manha. Não me leve a mal, mas acreditei no que andaram falando, que o senhor não existia, nem Lapônia, nem rena que puxa trenó… Tanta gente insistiu que acabei convencido. Era tudo fake news, não era? Está muito na moda isso. Espero que você (posso lhe chamar assim ou é muita intimidade?) não esteja chateado comigo.

Peço desculpas por escrever tão em cima da hora, já no dia de Natal. Estive ocupado com o trabalho, as tarefas da casa, as apresentações na escola das crianças, as infinitas confraternizações de fim de ano, a montagem da árvore, o pisca-pisca na varanda, a caixinha dos porteiros, o bolão da Mega Sena da virada, a compra dos presentes para a família (era melhor quando o senhor trazia). Essa felicidade compulsória de dezembro oprime a gente. Como pode um mês ter tantos dias e passar tão depressa? Perde-se até o fôlego. Credo!

Mas parei para escrever. Antes tarde do que nunca, né? Da última vez, eu tinha sete anos recém-completados e uma letra horrível. Acho até que o senhor não entendeu a caligrafia, porque pedi um videogame e ganhei um jogo de tabuleiro. Quem limpou a barra do senhor foi meu pai: eu fingi que estava dormindo no sofá e vi quando ele chegou do shopping e pôs a caixa embaixo da árvore.

Não lhe mandei mais cartinha depois disso. Era mais fácil pedir para ele. Se meu pai errasse a compra, a gente podia ir ao shopping trocar o presente. Melhor do que o senhor se despencar da Lapônia por causa de um garrancho mal-entendido. Juro que fiz isso com a melhor das intenções. Ainda lhe poupei tempo e dinheiro, não foi?

Aliás, até hoje lhe quebro esse galho. Eu mesmo compro os presentes que meus filhos pedem nas cartinhas. O senhor conseguiu ler alguma? Agora está moleza: eles imprimem e só assinam à mão, o que facilita a leitura e reduz a quase zero o risco de erro. O mais velho põe até foto do que quer. Mais uns anos e é capaz de colocar também o link para o site da loja. Eles ainda mandam cartas porque eu disse que o senhor não tinha e-mail, muito menos Whatsapp. Meus filhos reclamam toda vez, mas não querem correr o risco de ficar de mãos abanando. Mal sabem eles…

Como eu disse, há muito tempo não lhe escrevo, porque não tinha nada a pedir. Só que esse ano eu me peguei pensando que a nossa relação não pode ser baseada nessa coisa capitalista de presente. Onde fica o espírito natalino? O mundo anda tão descrente que eu resolvi voltar a acreditar. Espero que esteja tudo bem com o senhor, com a mamãe Noel, os duendes, o Rudolph e as outras renas. E que a Lapônia não esteja sofrendo muito com os efeitos do aquecimento global. Mande notícias, por favor! Feliz Natal!

Um abraço,
Pedro

P.S.: Deixei rabanadas para o senhor em cima da mesa. Espero que goste.

Imagem: Twas the Night Before Christmas, de Studio Paint Night Friday

Cena do crime

Um estampido seco rasgou o silêncio da madrugada.

Olívia acordou assustada. Virou para o lado e não viu o marido deitado na cama. O sono de Olívia se tornou leve desde que Maurício passou para o turno da noite. Agora, qualquer barulho a sobressaltava.

Olhou para o relógio: quase cinco da manhã, a hora em que ele costumava chegar. O coração acelerou, a respiração ficou encurtada. Levantou-se num pulo e foi espiar na janela.

Algumas pessoas passavam apressadas em direção a um ponto da rua que ela não conseguia ver. Logo chegou uma viatura da polícia. As luzes do giroscópio coloriram as paredes de vermelho e azul e fizeram crescer em Olívia a certeza de que deveria descer.

Pôs um roupão por cima da camisola, calçou os chinelos, passou a mão na carteira com os documentos e saiu do apartamento. Foi de escada. Com a boca seca, mal conseguiu dar bom dia ao porteiro.

Acelerou os passos. Quase corria.

— Quem é? – perguntou, com a voz trêmula, a um dos curiosos que rodeavam o cadáver já coberto. O homem deu de ombros. Olívia pediu ao policial para ver. Quando ele levantou o saco preto, ela reconheceu o corpo e chorou. Mas não era o marido.

Imagem: reprodução/internet

Pensando alto

Sempre ouvi dizer que o pensamento é infinito e que nele cabe o mundo, mas pensar ocupa espaço. Não há lugar suficiente na cabeça para alocar um sem-fim de informações. Deve ser por isso que a gente começa a pensar numa coisa, depois outra, outra e mais outra… Quando vê, não consegue mais voltar ao que tinha pensado primeiro. Esse fenômeno não acontece só porque o pensamento voou, como também se costuma dizer. Em algum momento, o cérebro precisa jogar algo fora para dar lugar ao novo. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço e, para entrar um, é preciso que outro saia, como um armário abarrotado de roupas implorando por desapego.

A gente joga fora ideias sem nem se dar conta, pensando e despensando. Quando chamam quem tem uma memória prodigiosa de “cabeçudo”, tendo a achar que se trata muito mais de inveja do que propriamente uma ofensa. Eu mesmo gostaria de lembrar mais das coisas. Não sei quantos pensamentos consigo guardar, mas tenho a impressão de que meu limite é muito baixo.

Não arrisco perder pensamentos potencialmente importantes: anoto tudo num caderninho que levo a tiracolo ou no celular, o cérebro extracorpóreo deste século. Escrevo com riqueza de detalhes para não deixar escapar nada. Pode ser que a mente não jogue tudo fora imediatamente e que sobre alguma parte do pensamento no arquivo morto, como se a gente não tivesse esvaziado a lixeira ainda. Mas e se não estiver mais no lixo? Não dá para bobear…

Vez ou outra, volto às anotações. Leio do papel (ou do celular) e repenso tudo de novo. Quer dizer, às vezes até diferente do que tinha pensado antes. Vai saber? Determinadas coisas são lixo mesmo: rasgo e jogo fora sem dó. Outras ficam melhores quando pensadas pela segunda vez. Aí um mero pensamento vira algo maior. Se eu percebo que ficou grande demais, passo tudo novamente para o papel, porque pensar ocupa espaço no cérebro. Já pensei nisso antes?

Imagem: Thoughts, de Pawel Kosior

Brancas nuvens

A moça do tempo mentiu: garantiu sol, e deu chuva. Não foi a primeira vez. Certamente, não será a última. No jornal, ela culpa as mudanças climáticas. Nos bastidores, reclama sem provas de uma defasagem dos satélites em uso no país. Nas redes sociais, é alvo de chacota pelos erros constantes. Teme perder a credibilidade, fatal para uma jornalista, mas não tem alternativa a não ser confiar no meteorologista da emissora. Embora gente boa, ele ostenta a superioridade de quem conhece as nuvens pelo nome em latim. Mas é a cara dela no vídeo. Para o telespectador, a culpa também. Por isso o medo de perder o emprego.

Eu não me importo. Cheguei em casa ensopado um punhado de vezes por causa de previsões equivocadas: choveu canivete quando tinha anunciado um sol de rachar. Além de tudo, o ar professoral da moça me irrita. Quem sabe a próxima não será menos arrogante? Só espero não ver escolhido aquele repórter excessivamente simpático, que dá rindo notícias de balas perdidas, acidentes de trânsito e buracos na rua. O jornal só conta tragédia e, mesmo assim, ele mostra todos os dentes. Será falta ou excesso de empatia? Tanto faz, porque não deve ser ele a ocupar o posto. Por alguma estranha razão, a chefia prefere garotas do tempo.

Se é para continuar errando, o gênero de quem conta as mentiras não faz diferença. Viram paisagem ainda as imagens de satélite, o telão repleto de botões, os mapas multicoloridos e as ilustrações de sol entre nuvens. Tudo muito bonito (os funcionários do departamento de arte merecem até aumento), mas pouco útil quando o interesse é saber se realmente vai chover ou não. Por via das dúvidas, não tiro mais o guarda-chuva da mochila. Comprei até um menor, mais leve e prático, já que não dá para confiar nas previsões da televisão.

Penso até em comprar um galo do tempo para colocar na estante da sala. Sabe onde vende? Ele pode ser bastante útil no Rio de Janeiro, o penico do Brasil. A cidade parece ter sido punida pelo excesso de beleza de seus mares e montanhas com alagamentos em tempo recorde. Bastam poucos minutos de uma chuva mais forte e o Rio praticamente submerge. Desafio qualquer pessoa a encontrar um carioca que não tenha uma história de enchente para contar. Eu mesmo tenho um punhado delas, umas engraçadas, outras trágicas.

Deve vir daí a especial atenção que damos ao tempo por aqui, sobretudo quando começam as tempestades típicas do início do ano. Nessa época, deixar as janelas abertas no fim da tarde é viver perigosamente, ainda que seja só uma fresta para fazer o ar circular. Acho que nem o temporal gosta de tomar chuva e se abriga onde dá.

Uma constatação me parece óbvia: este é o não-assunto preferido dos cariocas, como este texto exemplifica. Se dois desconhecidos entram no elevador e um deles resolve quebrar o gelo, eu sou capaz de apostar valendo dinheiro que o cidadão vai reclamar dos 40 graus da cidade purgatório da beleza e do caos, do inverno quase glacial do Leblon ou das águas de março fechando o verão. A temperatura ou o nível da umidade relativa do ar não importam; quem é do Rio não deixa o tempo passar em brancas nuvens.

Imagem: Cloud Study (1822), de John Constable (1776-1837)