As sobras

Você me perguntou se estava tudo bem.

Também por educação, eu respondi que sim.

Havia muito não estava. Em algum ponto, perdemos a conexão que nos permitia responder àquela pergunta com honestidade. Mas era inútil procurar um xis no calendário de um tempo tão elástico.

Ainda me doía pensar que éramos estranhos íntimos. Nós, que sabíamos tanto um do outro, dos troncos mais distantes da genealogia ao mapa das curvas do corpo, agora mal nos cumprimentávamos. Pensei nisso ao vê-lo na rua e receber um meio sorriso e uma pergunta que não esperava resposta. Como o tempo, você passou por mim. E eu voltei a me concentrar na lista de ingredientes da receita que criei para aproveitar as sobras da noite anterior.

Imagem: Nature morte à la bouilloire (1867-1869), de Paul Cézanne (1839-1906)

Um romance nos braços

Meu primeiro romance ainda dorme. Eu velo seu sono com carinho e um sopro de esperança no futuro. Um dia, quem sabe, será publicado. Confio-o a um punhado de editores. Alguns desistem no parágrafo de abertura, talvez até na frase inicial. Outros o ninam mais amorosamente, mas me devolvem uma série de sugestões inegociáveis. Vale para um livro o mesmo que para um filho: eles têm personalidade própria. E isso não se muda.

A primeira palavra é um palavrão. Precisa ser assim. Depois, uma cena tórrida de sexo se alonga por todo o capítulo. Intencionalmente, eu constranjo os leitores. Não os poupo de nada, só avança na leitura quem tiver um estômago preparado. O diabo que mora nos detalhes é mais sádico que o próprio marquês.

Não capitulo a quem diz que tenho uma boa história, mas me recomenda rever a abertura. Como não conseguem perceber que o restante do livro depende umbilicalmente do choque inicial? Ninguém nasce sem passar pelo parto. E todo mundo chora quando vem ao mundo.

Botam aquele começo na conta da inexperiência e me acusam de intransigente. Defendo cada vírgula, frase por frase, com a determinação irredutível da mãe que luta para dar o melhor ao filho. Não escrevi um romance perfeito, as imperfeições o farão crescer. Confio na criação e no respeito ao tempo. Enquanto o livro ainda dorme em meus braços, eu o acalanto com uma canção de ninar.

Obs: Este texto pode ser acompanhado da música Pan’s Labyrinth Lullaby, composta por Javier Navarrete para o filme O labirinto do fauno, de Guillermo del Toro.

Imagem: Sweetest Lullaby, de Studio Joyeeta

O sofá

O temporal me impedia de ver os prédios no horizonte. Pingos grossos faziam desenhos na janela: uma escada, um coelho, uma bruxa… Não sei quanto tempo passei analisando formas tão abstratas quanto meu futuro depois do divórcio. Só me restava o apartamento, ainda mais vazio sem ele, alguns móveis e fotos nos porta-retratos.

Via a chuva do sofá propositalmente desconfortável: separações de madeira delimitavam os lugares, apunhalando as costas, e o couro preto colava na pele. Lindo, de grife, caríssimo e obediente. Cumpria sem esforço a determinação de que ninguém se deitasse. Antes, eu evitava o contato; preferia uma cadeira da sala de jantar. Agora, deitava-me aos caprichos de uma liberdade teimosa.

Eram os últimos momentos do sofá comigo. Meu ex-marido viria buscá-lo tão logo parasse de chover na cidade. Estranhamente, desde a separação, não fazia um dia completo de sol. Enquanto aquela obra de arte não era retirada, eu subvertia a regra feito criança travessa em museu, esticando os dedos para tocar um quadro. Meu deleite era menos intenso: não havia guardas e as costas me doíam um pouco, apesar do edredom e das almofadas.

Confesso que pensei em rasgar o sofá com uma faca. Mas que prazer me daria essa vingança? Além do mais, não saberia nem calcular quantos meses teria de trabalhar para restituir o prejuízo. A partilha estava assinada e o sofá – indigno do próprio nome – integrava a parte dos bens que caberia ao meu ex-marido. Deitar-me era a transgressão possível. Os clarões da tempestade, o rugido dos trovões e os golpes da madeira em minha coluna não me impediram de pegar no sono. Sonhei com dias de céu azul e uma vida mais confortável.

Imagem: Woman on sofa (c. 1922-1927), de Guy Pène du Bois (1884-1958)

Nome de menino

A secretária do médico rompeu o silêncio na sala de espera:

— Menino José, pode entrar. Segunda porta à direita.

Os pacientes se entreolharam. Não havia nenhuma criança.

O espanto foi ainda maior quando um senhor de cabeleira muito branca, sobrancelhas grossas e despenteadas, se levantou e – apoiado na bengala – andou vagarosamente em direção ao consultório.

A recepcionista tentou abafar um risinho.

Aos poucos, os demais pacientes se voltaram às suas questões: uns ao celular, outros folheando revistas de celebridade que pareciam esquecidas na mesa de centro. Só uma senhora continuava intrigada, olhando para a secretária em busca de uma explicação que não veio.

Quase meia hora depois, o homem deixou a sala do cardiologista.

— Menino José, assina aqui a guia do plano de saúde, por gentileza – pediu a secretária.

Assinada a ficha, a outra paciente não se conteve:

— Posso fazer uma pergunta?

O senhor penteou as sobrancelhas com os dedos e disse:

— Pode…

— Por que ela o chama de menino?

Era a pergunta que todos na sala se fizeram, mas que poucos teriam a cara de pau necessária para verbalizar. A idade conferia essa prerrogativa à senhora. Quem estava ao celular ou folheando uma revista levantou a cabeça para acompanhar a cena. O tempo parecia suspenso.

O senhor abriu um sorriso antes de responder:

— Porque esse é o meu nome: Menino José.

A secretária do médico balançou a cabeça como se lhe fosse pedido que confirmasse a informação.

A senhora não se deu por satisfeita:

— Menino José?

O homem respirou fundo e se sentou no sofá para dar a explicação aguardada por todos, provavelmente pela milésima vez em seus muitos anos de vida. Ninguém piscava.

O senhor contou que era filho de um soldado. Quando a mãe estava grávida, o pai foi convocado a lutar na guerra. A família tinha a tradição de esperar o nascimento da criança não só para descobrir o sexo, mas para lhe atribuir um nome. A palavra final era do homem.

Os combates ainda se estenderiam por quatro longos anos após o nascimento do garoto, que era chamado pela mãe e pelos avós de menino.

O pai jamais voltou da guerra. A morte foi confirmada por um telegrama do governo à família, que poderia – enfim – escolher um nome.

Decidiram homenagear o morto, mas era tarde demais. A criança só atendia por Menino e não havia santo capaz de convencê-lo de que não se chamaria assim. Ficou, então, Menino José.

— Adoro meu nome e não abro mão dele!

Outra vez, sem que ninguém pedisse, a secretária confirmou a informação balançando a cabeça.

Satisfeita a curiosidade geral, Menino José apoiou as duas mãos na bengala para se levantar do sofá. Pediu licença a todos, desejou um ótimo dia e saiu. A secretária chamou o próximo paciente da fila. Os demais voltaram a olhar seus celulares e ler revistas antigas.

Imagem: Meninos soltando pipas (1947), de Candido Portinari

Um novo ano

Caro 2023,

Sei que nos conhecemos há pouco. Por isso, peço desculpa por lhe escrever tão depressa. Prometo ser breve. As expectativas pela sua chegada eram e são muito altas. Culpa de seus antecessores, que deixaram em nós marcas profundas e muitos traumas a serem curados. Tentamos confinamento, live, série, pão, vinho, reza, terapia… Nem todos bem-sucedidos. Será preciso dar tempo ao tempo. Quanto? Ainda uma incógnita.

Longe de mim fazer pressão, minha intenção não é esta, porém, sinto-me na obrigação de lhe avisar: esperamos muito da sua gestão. Faz uns anos, um candidato a deputado afirmou que a situação não poderia piorar. Nem tinha assumido o mandato e já mentia feito um político experiente. O país foi descendo a ladeira. Até agora, não dá para ter certeza se o freio foi mesmo acionado. Olhando de baixo, é possível perceber que será preciso muita disposição para subir tudo de novo. Está preparado?

Ouvi dizer que teremos uma mudança significativa tão logo você tome pé da situação em que o mundo se encontra: o início da Era de Aquário. Sou uma negação em astrologia, mas – se bem me lembro do que pregavam os hippies – viveremos uma longa fase de fraternidade, prosperidade e esperança. É falatório do povo, demagogia política ou podemos esperar tudo isso mesmo?

Antes de terminar esta carta, gostaria de lhe pedir que tenha paciência conosco. É difícil, eu sei, eu mesmo não tenho muita. Releve as maledicências dos que já sofreram demais e não falam por mal. Venha sem medo, aberto ao diálogo com os mais refratários e arredios. Mantenha a transparência sobre as dificuldades. Cuide com carinho dos que lhe parecerem frágeis. Ouça com atenção quem não tem espaço para levantar a voz. Se preciso, seja essa voz. Combata o ódio com mensagens de esperança, ainda que muitos não queiram ouvir. Espalhe palavras de conforto. Plante a semente do amor no solo de um ano fértil, regue com ternura e disciplina até brotar um mundo mais justo e humano.

Conte comigo para o que precisar.

Um abraço,
Pedro

Imagem: Frances, Fireworks (2021), de Christina French