Soneto de reparação

Ficaram o silêncio das palavras (mal)ditas,
as cartas queimadas na fogueira improvisada,
a foto do porta-retrato rasgada
e uma saudade sem fim na casa.

Procurei apagar o amor desse jeito:
extirpar a dor do meu peito,
deixando toda lágrima secar
para tentar recomeçar.

Quando perdi a cabeça,
pedi a ti: que me esqueça
e agora suplico o perdão.

Sem ti, fica vazio meu universo.
Então, nova chance eu te peço:
– Por favor, volta para mim!

Relendo a coletânia de poesia do Selo Off Flip de 2022, reencontrei este texto meu.

Imagem: Reencontro com o próprio texto (2023)

Estudo para personagem

Tinha mãos de bruxa. Os dedos eram muito finos e alongados, com uma estrutura ossuda e nós de uma centenária árvore seca. A pele flácida e de um cinza embolorado, que antes mal encobria estruturas tão roliças, agora sobrava. Em contraste com o restante da mão, as unhas eram fortes e afiadas feito garras de águia; não duvidava de que pudessem atravessar o peito e furar o coração com um único e certeiro golpe.

Tinha cara de bruxa. Os olhos nublados eram tão profundos quanto as olheiras que os circundavam e um deles orbitava perdido o vazio. Pelos que faltavam nos cílios abundavam nas sobrancelhas teimosamente desgrenhadas que quase se fundiam sobre o nariz pontiagudo. Não havia nenhuma verruga, mas marcas de um sol inclemente e imemorial eram claramente visíveis. As maçãs do rosto tombavam sobre a boca murcha. Mantinha os lábios firmemente contraídos, como se quisesse evitar que a vida escapasse por um sorriso frouxo de dentes ausentes. Os cabelos ralos e quebradiços gozavam de mais liberdade, voando ao sabor do vento e parando por vezes diante do habitual cenho franzido. Os lóbulos das grandes orelhas pareciam carregar o peso de todos os brincos passados.

Tinha corpo de bruxa. As raízes do pescoço fincado sobre os ombros caídos tinham sulcos profundos. As costas se curvavam para frente em uma reverência improvável. Tinha diminuído alguns centímetros nas últimas décadas. As pernas arqueadas conferiam uma aparência ainda mais frágil àquela lúgubre figura.

Em tudo lembrava uma bruxa, mas era apenas uma senhora passeando com um cachorro.

Imagem: Estudo para personagem (2023)