A mesma chuva

Alvenaria
O temporal interrompeu o sonho. Praguejando o despertar abrupto, sentou-se na cama para calçar os chinelos. Depois de percorrer os cômodos fechando janelas abertas, voltou para o quarto. A mulher continuava imóvel, confortável sob as cobertas, alheia aos lampejos dos raios e às trovoadas que sacudiam os vidros. As crianças também dormiam pesado.

Madeira
Não deu tempo para nada. Nem de calçar os chinelos. No clarão de um relâmpago, viu o teto sucumbir ao peso da tempestade e as ripas das paredes voarem feito folha de papel. A enxurrada arrastou a casa até o pé do morro. O último fiapo de esperança se foi na manhã seguinte, quando encontrou a mulher e as crianças sob os escombros. Praguejou a viuvez abrupta. O temporal destruiu sonhos.

Imagem: Heavy rain (2016), de Tae Kim (1970)

O bilhete

Escrevi “Eu te amo” em azul.
E me pareceu que te amava menos do que se tivesse escrito em vermelho.

Não me recordo mais de onde veio a inspiração para este texto claramente ficcional, posto que só uso canetas pretas. De todo modo, e afastando a modéstia e uma costumeira síndrome do impostor da qual talvez nunca me livre, gostei de como soaram as palavras. Fiz a inscrição na 3ª edição do MicroConto de Ouro. O resultado saiu há quase uma semana e, para minha surpresa, fiquei entre os finalistas. Por sinal, muitíssimo bem acompanhado. Recomendo fortemente que leiam os microcontos selecionados.

Imagem: O bilhete (2023)

Estudo para personagem

Tinha mãos de bruxa. Os dedos eram muito finos e alongados, com uma estrutura ossuda e nós de uma centenária árvore seca. A pele flácida e de um cinza embolorado, que antes mal encobria estruturas tão roliças, agora sobrava. Em contraste com o restante da mão, as unhas eram fortes e afiadas feito garras de águia; não duvidava de que pudessem atravessar o peito e furar o coração com um único e certeiro golpe.

Tinha cara de bruxa. Os olhos nublados eram tão profundos quanto as olheiras que os circundavam e um deles orbitava perdido o vazio. Pelos que faltavam nos cílios abundavam nas sobrancelhas teimosamente desgrenhadas que quase se fundiam sobre o nariz pontiagudo. Não havia nenhuma verruga, mas marcas de um sol inclemente e imemorial eram claramente visíveis. As maçãs do rosto tombavam sobre a boca murcha. Mantinha os lábios firmemente contraídos, como se quisesse evitar que a vida escapasse por um sorriso frouxo de dentes ausentes. Os cabelos ralos e quebradiços gozavam de mais liberdade, voando ao sabor do vento e parando por vezes diante do habitual cenho franzido. Os lóbulos das grandes orelhas pareciam carregar o peso de todos os brincos passados.

Tinha corpo de bruxa. As raízes do pescoço fincado sobre os ombros caídos tinham sulcos profundos. As costas se curvavam para frente em uma reverência improvável. Tinha diminuído alguns centímetros nas últimas décadas. As pernas arqueadas conferiam uma aparência ainda mais frágil àquela lúgubre figura.

Em tudo lembrava uma bruxa, mas era apenas uma senhora passeando com um cachorro.

Imagem: Estudo para personagem (2023)

Análise sintática

Mal havia acabado de escrever a frase e o adjetivo pulou da página indignado. Ele se recusava a compartilhar qualquer sentença com um advérbio de negação. Queixava-se de que lhe deturpavam o sentido quando o precediam. “Sempre dizem o oposto do que quero dizer e me impedem de ser quem sou”, afirmava.

As outras palavras me olhavam atentas. Aguardavam o rumo que a situação iria tomar. Se eu perdesse o controle, o texto – que já não ia bem – desandaria de vez. Respirei fundo e tentei negociar, mas o adjetivo não arredou pé. “Estou farto de me adaptar a tudo, de ter sempre que concordar em gênero, número e grau”, gritou a plenos pulmões.

Um burburinho tomou conta da frase. Os artigos indefinidos, sempre tão flexíveis, estavam em choque com a rebeldia. As conjunções ponderavam se tomavam partido, se mantinham a subordinação ou se apenas faziam orações. Sem terem sido invocados, os substantivos próprios fingiam que o assunto não lhes dizia respeito. As preposições advogavam pela coesão do grupo. Enquanto os pronomes achavam o caso pessoal demais para intervir, os numerais tentaram, em vão, impor alguma ordem. Nem os gritos imperativos dos verbos convenceram o adjetivo. Faltou acordo, sobraram interjeições.

Perto do fim do prazo para entregar o texto, não tive alternativa: peguei o adjetivo pelo braço e fomos para a terapia.

Imagem: Adjetivo (2023)