Talento atômico

Christopher Nolan sabe ser um bom diretor. Não uso o verbo saber por acaso. Quando se põe a serviço do roteiro, produz obras interessantes, como “Amnésia”, a trilogia “Batman” ou “Dunkirk”. Em outros momentos, parece mais interessado em exibir técnica do que contar uma boa história, casos de “A origem” e “Interestelar”; virtuose, porém, que conquista público.

Baseado em dois livros que narram os bastidores da elaboração da bomba atômica, Nolan constrói um drama histórico com tintas de ficção científica em “Oppenheimer”. Felizmente, permite que os atores brilhem mais do que truques de câmera ou efeitos especiais, centrando neles a força da obra.

Com o perdão do trocadilho, o talento do elenco explode na tela. Em nova parceria com o cineasta, Cillian Murphy hipnotiza com o amálgama de obrigação patriótica e angústia com que molda J. Robert Oppenheimer, considerado o pai da bomba atômica. Também merecem destaque Robert Downey Jr, Emily Blunt e Matt Damon. Há ainda participações luxuosas de Kenneth Branagh e Gary Oldman.

Tecnicamente impecável, “Oppenheimer” oferece uma nova prova de que o talento de Christopher Nolan é mais bem empregado quando o propósito – refletir sobre o sentido das guerras – precede a engenharia fílmica.

Imagem: Oppenheimer (2023), de Christopher Nolan

E aí, boneca?

Há tempos uma estreia não causa tamanho alvoroço: sessões esgotadas, filas enormes, multidões de rosa, comoção nas redes sociais e muitas marcas tentando tirar proveito do burburinho. Antes mesmo de ser exibido, o filme “Barbie” já era um sucesso, confirmado pela bilheteria do primeiro final de semana em cartaz.

A curiosidade tem fundamento. Depois de “Lady Bird: a hora de voar” (2017) e “Adoráveis mulheres” (2019), a roteirista e diretora Greta Gerwig prometeu transformar a boneca-símbolo do patriarcado e do estilo de vida norte-americano no mais improvável dos ícones feministas. Neste sonho revolucionário, Barbie vê seu mundo cor-de-rosa prestes a ruir por uma crise existencial. A protagonista embarca, então, em uma viagem na qual descobre que o mundo real é machista e misógino, realidade oposta à da Barbielândia.

À primeira vista, “Barbie” funciona. Margot Robbie e Ryan Gosling se entregam à proposta sem medo do ridículo. Afinal, dar vida a bonecos de plástico com corpos inumanamente perfeitos já é ridículo por si só. Os cenários lisergicamente multicoloridos, a trilha sonora caprichada no pop e as muitas referências a clássicos do cinema ajudam a edulcorar a obra.

O roteiro, embora enfileire piadas capazes de fazer o espectador rir, é mais frágil que a masculinidade de Ken. As pretensas críticas ao patriarcado são mais rasas que a piscina da casa da Barbie. As supostas ideias feministas de que a protagonista toma consciência são mais anacrônicas que sua coleção de roupas. E a mensagem que a diretora busca passar é tão sincera quanto as comidas e bebidas que a boneca tira de sua geladeira.

Na ânsia de subverter as regras do capitalismo, Greta Gerwig se perde em uma trama que idiotiza as figuras masculinas (o feminismo não é uma inversão do machismo), reforça a misoginia e acentua estereótipos. No universo de “Barbie”, a vida de plástico continua fantástica.

Foto: Barbie (2023), de Greta Gerwig

Um doce para quem adivinhar

Sete anos. Segundo uma teoria muito difundida pela internet, mas de credibilidade incerta, nosso paladar muda a cada ciclo destes. Embora desconfie do número cabalístico, tenho percebido uma mudança significativa nas minhas preferências gastronômicas, sobretudo em relação ao doce.

Quando mais novo, não havia dúvida na hora da sobremesa: qualquer uma de chocolate. Quanto mais açúcar, melhor! Agora, dá-se quase o oposto: o cacau perdeu o protagonismo e, na maioria das vezes, é a última opção do cardápio.

Doces frutados, azedos ou mesclas com salgados (caramelo e queijo, que delícia!) ganham cada vez mais a minha simpatia. O chocolate, quando aparece, vem em versões amargas ou combinado com frutas. No atual setênio (sim, essa palavra existe!) em que me encontro, estou viciado em chocolate com laranja.

E daqui a sete anos, qual vai ser?

Imagem: Choux de chocolate com laranja (2023)

A carapuça

Um vento balança a folhagem
ouço o assobio que vem da mata
sei que é ele, só pode ser:
Saci Pererê

Deve preparar alguma astúcia
e chegar no redemoinho
espera, talvez, o cair da noite
e o silêncio da casa para agir sozinho

Vem com frequência a estas bandas
perturbar o sono da sinhá
com traquinagens mil

Deixo a porta aberta para que entre
e brinque até ficar saciado.
Que seja ele a rir da cara deste Brasil.

Poema livremente inspirado no episódio Folclore moderno, do podcast Rádio Novelo Apresenta.

Imagem: Aparição do Saci urbano (2016), de Thiago Vaz

Análise sintática

Mal havia acabado de escrever a frase e o adjetivo pulou da página indignado. Ele se recusava a compartilhar qualquer sentença com um advérbio de negação. Queixava-se de que lhe deturpavam o sentido quando o precediam. “Sempre dizem o oposto do que quero dizer e me impedem de ser quem sou”, afirmava.

As outras palavras me olhavam atentas. Aguardavam o rumo que a situação iria tomar. Se eu perdesse o controle, o texto – que já não ia bem – desandaria de vez. Respirei fundo e tentei negociar, mas o adjetivo não arredou pé. “Estou farto de me adaptar a tudo, de ter sempre que concordar em gênero, número e grau”, gritou a plenos pulmões.

Um burburinho tomou conta da frase. Os artigos indefinidos, sempre tão flexíveis, estavam em choque com a rebeldia. As conjunções ponderavam se tomavam partido, se mantinham a subordinação ou se apenas faziam orações. Sem terem sido invocados, os substantivos próprios fingiam que o assunto não lhes dizia respeito. As preposições advogavam pela coesão do grupo. Enquanto os pronomes achavam o caso pessoal demais para intervir, os numerais tentaram, em vão, impor alguma ordem. Nem os gritos imperativos dos verbos convenceram o adjetivo. Faltou acordo, sobraram interjeições.

Perto do fim do prazo para entregar o texto, não tive alternativa: peguei o adjetivo pelo braço e fomos para a terapia.

Imagem: Adjetivo (2023)