Uma ideia…

A frase pensada para abrir este texto se perdeu no caminho: metaforicamente, em algum escaninho de uma memória nada prodigiosa; literalmente, porque estava no ônibus e não a anotei. Confiei que fosse boa o suficiente para ser lembrada em momento posterior. Boa talvez, mas – sabemos agora – não inesquecível.

Sobram-me a página em branco, a sensação de impotência e a culpa. Como recuperar um pensamento perdido? Por onde se começa a vasculhar? Nenhuma ideia. O olhar percorre os recônditos da sala em vão. Não há pista sequer do tema.

O jeito é admitir a derrota e buscar outra maneira de abrir o texto. Apelo para o truque mais barato que um escritor pode empregar: lamentar a perda de uma ideia. O clichê se perpetua graças ao leitor, que avança na leitura à espera de que a literatura encontrará a frase irrecuperável alguns parágrafos adiante.

Derrotado, o autor busca salvar sua obra a qualquer custo. Iludido, o leitor aguarda com ansiedade um desfecho original. Esquecem-se ambos de que a expectativa é a mãe da decepção. Peço desculpas a todos: este texto não tem salvação.

Imagem: Lost (2017), de Michael Lang

Caderno de perguntas

minha cor preferida?
a dos teus olhos.

o som que eu mais gosto de ouvir?
a tua gargalhada.

o cheiro que eu quero sentir sempre?
o do teu pescoço.

o melhor sabor do mundo?
o do teu beijo.

do que eu mais gosto na minha aparência?
do meu sorriso quando te vejo.

a melhor hora do dia?
quando tu chegas.

do que tenho medo?
nunca mais te ver.

minha maior qualidade?
te amar.

Imagem: Writing (2014), de Marcel Garbi

Corrida

a gota pinga da torneira
o mofo na parede úmida
o tempo corre

ninguém vê a vida passar
nem antes
nem durante
só depois (ou muito depois)
o tempo corre

previsões falhas
tendências mudam
o tempo corre

coisas que pouco importam
muito significam
o tempo (es)corre

Imagem: A persistência da memória (1931), de Salvador Dalí (1904-1989)

Cidade cinza

já me vão os anos
a cor dos cabelos
a firmeza dos passos

volto à cidade em que nasci
e que já não é mais minha
pouco restou do que vivi
só memórias

não há mais o parque
o coreto da praça
a velha ponte de madeira
que atravessava o rio

nem o rio é o mesmo
as águas pouco turvas
as tardes de pescaria
os verões refrescados
as braçadas entre as margens

a cidade hoje
é só cinza

Imagem: Rainy gray city (2022), de Eugene Zhuravlev (1989)