Sim, uma família

Quando publiquei uma foto no lançamento de “Duas mães e uma filha”, descrevi Maíra Donnici como uma das pessoas mais corajosas que conheço. Tinha absoluta certeza de que o livro comprovaria isto. E, sim, coragem é um substantivo que veste Maíra de forma tão perfeita quanto o vermelho escolhido para momentos especiais.

“Duas mães e uma filha” é o registro das maternidades de Maíra e Inês, mães corujas e orgulhosas de Antonia. Obviamente, o amor transborda em cada página, em cada frase, em cada vírgula. Só que Maíra vai muito além (corajosa, lembra?): expõe seus medos, compartilha suas angústias, escancara e demole preconceitos (dela e dos outros). Cercada de privilégios em um mundo cor de rosa? Nada disso: é vermelho em todos os tons.

Como uma história tão particular pode ser tão cativante? A coragem de se abrir com o leitor explica parte considerável (sendo humanos, nós nos reconhecemos na força e nas fragilidades dos outros), mas não tudo. Acontece que Maíra não apenas é corajosa o bastante para compartilhar – com grande generosidade – detalhes íntimos, como o faz com uma clareza singular e uma escrita potente. Depois de devorar as páginas de “Duas mães e uma filha”, eu duvido que o leitor não queira fazer parte desta família.

Imagem: capa de “Duas mães e uma filha”

Cabeça de todos nós

Contos são fragmentos de vida: entra-se neles por um rasgo na história, não necessariamente pelo começo; o mesmo se sucede na saída, que pode ser no fim ou bem antes dele. Então, por esta natureza, contos são imprevisíveis – e, justamente por isso, fascinantes.

Escrevê-los, portanto, é um desafio. Como ambientar quem entra pela fresta? Que detalhes precisam ser iluminados e quais devem permanecer nas sombras? Em que ponto o texto acaba, se é que a história vinda? São todas perguntas importantes e igualmente difíceis de serem respondidas.

Conheço apenas duas formas de se escrever um bom conto: sorte ou trabalho. O primeiro caso não precisa de explicação; algo de mágico acontece na literatura e o texto nasce bom e acabado. No mais, é preciso talento (contar histórias é um dom) e dedicação para lapidar o conto até que ele atinja a forma final.

Em “Cabeça de todos nós”, publicado pela editora Patuá, Orete Nascimento exemplifica com sucesso a artesania da escrita, brindando o leitor com contos maduros, bem trabalhados e que trazem os finais surpreendentes que são a marca indelével do autor.

Imagem: Capa do livro “Cabeça de todos nós”

A cor do amor

Até onde você iria por uma paixão? Em “Madu em rose”, romance de estreia da escritora carioca Natália Tupper publicado pelo Grupo Editorial Coerência, Maria Eduarda – a Madu do título – embarca em um avião rumo à Europa para dar uma nova chance a um amor mal resolvido no Brasil. Do outro lado do Atlântico, a estudante de direito descobre que as leis que regem um relacionamento são bem mais complexas do que qualquer código penal.

Passeando por lugares icônicos de Lisboa, Paris e Rio de Janeiro, a autora insere o leitor nos caminhos por onde passam as personagens pela riqueza com que detalha os cenários e brinca com clichês típicos das comédias românticas do cinema. A promessa de Natália de não revelar se a obra é autobiográfica põe em xeque também a máxima de que a vida imita a arte. Seria o contrário ou nada disso?

A aposta na sensorialidade vai além da farta ambientação. O sumário é uma grande playlist: cada capítulo é batizado com o nome de uma música, indo de Amy Winehouse a Caetano Veloso, passando por Noir Desir. As canções não só descrevem o estado psicológico das personagens, mas ajudam a embalar a leitura.

Como amor sem sexo é amizade, disseram Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor em música que não está citada, mas ecoa em diversas passagens, Natália Tupper não economiza nas cenas mais quentes, descritas com precisão e erotismo elegantes.

“Madu em rose” é narrado em múltiplas vozes, trazendo os pontos de vista dos principais envolvidos. São pouco mais de duzentas páginas que podem ser devoradas com volúpia ou consumidas devagar, a depender do gosto do freguês.

Imagem: “Madu en rose” (2023)

Um sonho compartilhado

Uma vida não cabe num filme, por mais curta ou monótona que seja. Levá-la para as telas obriga a fazer um recorte. Ou corre-se o risco de transformar a obra em uma sequência de pequenos episódios. Não raro, calha de acontecerem ambas as coisas: um amontoado de fatos circunscrito a um determinado recorte. O resultado nem sempre – para não dizer quase nunca – é satisfatório. Escrever (e filmar) exige fazer escolhas.

A opção, em “Nosso sonho”, foi por contar a história de Claudinho e Buchecha pela visão do segundo sobre a relação com o primeiro e a importância que este teve em sua vida. Estabeleceu-se, portanto, um recorte relacional, mas não necessariamente temporal. O filme abarca um período de cerca de trinta anos, extenso demais para ser condensado em duas horas. Se, por um lado, consegue dar profundidade à relação de Buchecha com o pai, por outro, faz parecer que o sucesso da dupla veio fácil demais.

Em muitas das cenas, o diretor Eduardo Albergaria joga com a memória afetiva dos espectadores. Quem viveu os anos noventa (provavelmente, a grande maioria que irá ao cinema) é capaz de completar e compreender os não-ditos; os que não viveram ou não estavam familiarizados com a cultura carioca no período terão mais dificuldade de amarrar as pontas soltas. Isso torna “Nosso sonho” um filme ruim? Certamente não, mas legar à plateia parte da responsabilidade por completar as lacunas o fragiliza. A estratégia das obras de suspense não cai muito bem ao drama.

Apesar de ter sucumbido ao risco de tornar tudo episódico demais, a cinebiografia acerta ao pontuar algumas passagens com humor (destaque para a ótima atuação de Lucas Koka Penteado, sobretudo na cena do orelhão) e ao equilibrar doses de emoção e nostalgia na sequência em que relembra o último show da dupla. Para muitos, este deve ser apenas mais um filme a retratar uma trajetória musical de sucesso. Para quem compartilhou dos anos noventa, talvez “Nosso sonho” seja bem mais do que isto.

Imagem: Nosso sonho (2023), de Eduardo Albergaria

Talento atômico

Christopher Nolan sabe ser um bom diretor. Não uso o verbo saber por acaso. Quando se põe a serviço do roteiro, produz obras interessantes, como “Amnésia”, a trilogia “Batman” ou “Dunkirk”. Em outros momentos, parece mais interessado em exibir técnica do que contar uma boa história, casos de “A origem” e “Interestelar”; virtuose, porém, que conquista público.

Baseado em dois livros que narram os bastidores da elaboração da bomba atômica, Nolan constrói um drama histórico com tintas de ficção científica em “Oppenheimer”. Felizmente, permite que os atores brilhem mais do que truques de câmera ou efeitos especiais, centrando neles a força da obra.

Com o perdão do trocadilho, o talento do elenco explode na tela. Em nova parceria com o cineasta, Cillian Murphy hipnotiza com o amálgama de obrigação patriótica e angústia com que molda J. Robert Oppenheimer, considerado o pai da bomba atômica. Também merecem destaque Robert Downey Jr, Emily Blunt e Matt Damon. Há ainda participações luxuosas de Kenneth Branagh e Gary Oldman.

Tecnicamente impecável, “Oppenheimer” oferece uma nova prova de que o talento de Christopher Nolan é mais bem empregado quando o propósito – refletir sobre o sentido das guerras – precede a engenharia fílmica.

Imagem: Oppenheimer (2023), de Christopher Nolan