A mesma chuva

Alvenaria
O temporal interrompeu o sonho. Praguejando o despertar abrupto, sentou-se na cama para calçar os chinelos. Depois de percorrer os cômodos fechando janelas abertas, voltou para o quarto. A mulher continuava imóvel, confortável sob as cobertas, alheia aos lampejos dos raios e às trovoadas que sacudiam os vidros. As crianças também dormiam pesado.

Madeira
Não deu tempo para nada. Nem de calçar os chinelos. No clarão de um relâmpago, viu o teto sucumbir ao peso da tempestade e as ripas das paredes voarem feito folha de papel. A enxurrada arrastou a casa até o pé do morro. O último fiapo de esperança se foi na manhã seguinte, quando encontrou a mulher e as crianças sob os escombros. Praguejou a viuvez abrupta. O temporal destruiu sonhos.

Imagem: Heavy rain (2016), de Tae Kim (1970)

Um sonho compartilhado

Uma vida não cabe num filme, por mais curta ou monótona que seja. Levá-la para as telas obriga a fazer um recorte. Ou corre-se o risco de transformar a obra em uma sequência de pequenos episódios. Não raro, calha de acontecerem ambas as coisas: um amontoado de fatos circunscrito a um determinado recorte. O resultado nem sempre – para não dizer quase nunca – é satisfatório. Escrever (e filmar) exige fazer escolhas.

A opção, em “Nosso sonho”, foi por contar a história de Claudinho e Buchecha pela visão do segundo sobre a relação com o primeiro e a importância que este teve em sua vida. Estabeleceu-se, portanto, um recorte relacional, mas não necessariamente temporal. O filme abarca um período de cerca de trinta anos, extenso demais para ser condensado em duas horas. Se, por um lado, consegue dar profundidade à relação de Buchecha com o pai, por outro, faz parecer que o sucesso da dupla veio fácil demais.

Em muitas das cenas, o diretor Eduardo Albergaria joga com a memória afetiva dos espectadores. Quem viveu os anos noventa (provavelmente, a grande maioria que irá ao cinema) é capaz de completar e compreender os não-ditos; os que não viveram ou não estavam familiarizados com a cultura carioca no período terão mais dificuldade de amarrar as pontas soltas. Isso torna “Nosso sonho” um filme ruim? Certamente não, mas legar à plateia parte da responsabilidade por completar as lacunas o fragiliza. A estratégia das obras de suspense não cai muito bem ao drama.

Apesar de ter sucumbido ao risco de tornar tudo episódico demais, a cinebiografia acerta ao pontuar algumas passagens com humor (destaque para a ótima atuação de Lucas Koka Penteado, sobretudo na cena do orelhão) e ao equilibrar doses de emoção e nostalgia na sequência em que relembra o último show da dupla. Para muitos, este deve ser apenas mais um filme a retratar uma trajetória musical de sucesso. Para quem compartilhou dos anos noventa, talvez “Nosso sonho” seja bem mais do que isto.

Imagem: Nosso sonho (2023), de Eduardo Albergaria

O bilhete

Escrevi “Eu te amo” em azul.
E me pareceu que te amava menos do que se tivesse escrito em vermelho.

Não me recordo mais de onde veio a inspiração para este texto claramente ficcional, posto que só uso canetas pretas. De todo modo, e afastando a modéstia e uma costumeira síndrome do impostor da qual talvez nunca me livre, gostei de como soaram as palavras. Fiz a inscrição na 3ª edição do MicroConto de Ouro. O resultado saiu há quase uma semana e, para minha surpresa, fiquei entre os finalistas. Por sinal, muitíssimo bem acompanhado. Recomendo fortemente que leiam os microcontos selecionados.

Imagem: O bilhete (2023)