Escritos

Limpava o armário quando encontrei cadernos da escola e da faculdade. Não sei por que ainda os guardava, dado meu desapego por memórias materiais – prefiro as que ficam em algum canto do cérebro – e a inutilidade deles como fontes de consulta. Anotações, esquemas, desenhos e direcionamentos tornaram-se obsoletos. Com a internet na palma da mão, poucos cliques resolvem um problema.

Antes de jogar tudo fora e liberar espaço no armário, resolvi folhear as páginas amareladas pelo tempo. Não fui transportado para as carteiras escolares, a nuvem de giz pairando no ar ou coisa que o valha. Tinha lembranças, sim, mas não era nostalgia. Saudade eu sinto de pessoas, não de momentos. E os colegas de escola que me importava conservar são meus amigos até hoje.

Notei um fato curioso: conforme o período letivo avançava, o volume de anotações diminuía. Março e abril ocupavam muito mais folhas do que o último bimestre. O colorido das canetas também rareava, até se limitar ao azul em novembro. Anos mais tarde, sem que houvesse uma explicação racional, passei a usar apenas caneta preta.

O lado cartesiano de minha mente buscou uma explicação para o preenchimento desequilibrado das páginas. Como não é razoável supor que os professores ensinassem menos com o transcorrer do ano, intuí que a resposta vinha do meu desempenho estudantil. Sempre fui um aluno responsável, prestava atenção às aulas, fazia os deveres de casa e tirava boas notas. Em geral, no terceiro bimestre, já tinha obtido a pontuação necessária para ser aprovado em todas as disciplinas. Por isso, podia me dar ao luxo de desacelerar e antecipar as férias em alguma medida.

O que mais me chamou a atenção nos escritos antigos, porém, foi minha letra. Nos anos iniciais, era clara a influência dos cadernos de caligrafia que fui obrigado a fazer: traços plasticamente redondos, palavras perfeitamente alinhadas, espaçamentos absolutamente simétricos. Era mais um desenho do que uma escrita.

Aos poucos, o equilíbrio de causar orgulho aos alfabetizadores se dobrou à minha personalidade. Uma a uma, as letras cursivas deram lugar às letras de forma, começando pelas vogais, passando pelas consoantes mais abauladas, até completar o alfabeto. Depois, aboli as minúsculas. Um pequeno parênteses: estranhamente, escrevendo ao computador ou ao celular de maneira informal, dá-se o oposto e aposento as maiúsculas.

Desde o fim da faculdade, a escrita manual tem sido cada vez mais rara. Bilhetes viram mensagens de texto, lembretes estão na agenda do celular (assim como listas de compras) e não me recordo da última vez em que precisei escrever uma carta de próprio punho. Nas poucas ocasiões em que pego uma caneta, fica evidente a degradação da caligrafia.

Reler o passado me despertou o desejo de voltar a escrever à mão. Talvez o faça, agora que liberei espaço para novos cadernos no armário.

Imagem: A paixão da criação, de Leonid Pasternak (1862-1945)

Quero ser Elena Ferrante

Quero ser Elena Ferrante, um mistério literário indecifrável. Quero que leiam minhas obras pelo que elas são, descontaminadas das imperfeições do autor. Quero me descolar das letras, separar criador e criatura, sem deixar qualquer pista nas entrelinhas. Quero ser mais um anônimo na multidão que passa apressada pelas ruas de Nápoles, de Tóquio ou de São Paulo. Quero uma vida ordinária, flanar pela feira escolhendo legumes e peixes frescos, barganhar o preço com o dono da banca, provar as frutas da estação. Quero o direito a ter um nome simples e banal, e não arrastar o peso de um sobrenome famoso. Quero não ter de corresponder a nenhuma expectativa que não seja a minha, nem prestar contas do que não contratei. Quero me olhar no espelho e me ver de verdade, sem refletir o que esperam de mim. Quero a infinita liberdade de ser quem eu quiser. Ou de não ser.

Imagem: Le faux miroir (Paris, 1929), de René Magritte (1898-1967)

Big bang

Senti o suor frio percorrer as costas, uma gota gelada descendo vértebra por vértebra até o cóccix. De tão perto, os olhos eram incapazes de fechar o foco, mas eu não tinha dúvida: havia uma arma apontada para a minha testa. Não passou um filme, nem qualquer outro pensamento pela cabeça que não fosse a certeza de que morreria em breve. Questão de segundos, talvez.

Teria tempo de ouvir o som do tiro, de sentir dor ou seria uma morte instantânea? Um disparo daquela distância explodiria meus miolos. Ossos, músculos, veias… Tudo se transformaria em uma massa amorfa embebida em sangue voando pelos ares. Antes mesmo de acontecer, eu já conseguia sentir meu big bang particular.

A minha vida não dependia mais de mim. As escolhas que fiz, as decisões que tomei, os caminhos de que abdiquei, as palavras que disse, e também as que deixei de dizer, nada disso importava. Então, morrer era assim: estar vivo e, de repente, já não estar? Ouvi um estalo. E, então, um silêncio absoluto.

Imagem: Big bang (2022), de Helena Monniello