Sim, uma família

Quando publiquei uma foto no lançamento de “Duas mães e uma filha”, descrevi Maíra Donnici como uma das pessoas mais corajosas que conheço. Tinha absoluta certeza de que o livro comprovaria isto. E, sim, coragem é um substantivo que veste Maíra de forma tão perfeita quanto o vermelho escolhido para momentos especiais.

“Duas mães e uma filha” é o registro das maternidades de Maíra e Inês, mães corujas e orgulhosas de Antonia. Obviamente, o amor transborda em cada página, em cada frase, em cada vírgula. Só que Maíra vai muito além (corajosa, lembra?): expõe seus medos, compartilha suas angústias, escancara e demole preconceitos (dela e dos outros). Cercada de privilégios em um mundo cor de rosa? Nada disso: é vermelho em todos os tons.

Como uma história tão particular pode ser tão cativante? A coragem de se abrir com o leitor explica parte considerável (sendo humanos, nós nos reconhecemos na força e nas fragilidades dos outros), mas não tudo. Acontece que Maíra não apenas é corajosa o bastante para compartilhar – com grande generosidade – detalhes íntimos, como o faz com uma clareza singular e uma escrita potente. Depois de devorar as páginas de “Duas mães e uma filha”, eu duvido que o leitor não queira fazer parte desta família.

Imagem: capa de “Duas mães e uma filha”

Haja coração

Quantos seguidores deve ter um advogado, um personal trainer ou um escritor para ser considerado bom? Dia desses, uma amiga médica contou ter recebido uma nova paciente. Marcara a consulta por indicação de alguém, mas se mostrava ressabiada, porque a cardiologista “não é muito famosa no Instagram, né, doutora?”.

O exemplo corrobora a impressão de que a excelência profissional tem se verificado cada vez menos pelos títulos acadêmicos e tempo de experiência, e mais por números superlativos na internet. Dentista sem canal no YouTube não faz boa obturação, economista sem conta no LinkedIn não sabe onde aplicar bem o dinheiro e padeiro que não faz dancinha no TikTok não é ninguém na fila do pão.

Não duvido de que haja excelentes quadros entre os influencers, assim como há profissionais competentíssimos que passam longe do estrelato virtual. Eu, particularmente, ainda procuro um cardiologista pela capacidade de interpretar um eletrocardiograma, mas há quem prefira alguém hábil em publicar, acumular curtidas e amealhar seguidores nas redes sociais. Tempos modernos: a fama fulminante vale mais do que evitar um infarto.

Imagem: Heartbeat medical stretched, de Sovereign Institute

Cabeça de todos nós

Contos são fragmentos de vida: entra-se neles por um rasgo na história, não necessariamente pelo começo; o mesmo se sucede na saída, que pode ser no fim ou bem antes dele. Então, por esta natureza, contos são imprevisíveis – e, justamente por isso, fascinantes.

Escrevê-los, portanto, é um desafio. Como ambientar quem entra pela fresta? Que detalhes precisam ser iluminados e quais devem permanecer nas sombras? Em que ponto o texto acaba, se é que a história vinda? São todas perguntas importantes e igualmente difíceis de serem respondidas.

Conheço apenas duas formas de se escrever um bom conto: sorte ou trabalho. O primeiro caso não precisa de explicação; algo de mágico acontece na literatura e o texto nasce bom e acabado. No mais, é preciso talento (contar histórias é um dom) e dedicação para lapidar o conto até que ele atinja a forma final.

Em “Cabeça de todos nós”, publicado pela editora Patuá, Orete Nascimento exemplifica com sucesso a artesania da escrita, brindando o leitor com contos maduros, bem trabalhados e que trazem os finais surpreendentes que são a marca indelével do autor.

Imagem: Capa do livro “Cabeça de todos nós”

Pés descalços

a sereia descalçou os sapatos e entrou no mar
cantou para enfeitiçar a tábua das marés
venceu a rebentação como se nada fosse
e se perdeu no encontro azul do horizonte

ficaram na areia os distintos sapatos
que não tardaram em virar conchas
umedecidas pelos beijos das ondas
secas pelo hálito salgado dos ventos

pegadas não mais havia
tinham sumido na mesma espuma
em que se escondiam as tatuíras

a sereia nunca voltou à praia
e nem poderia
tinha perdido os sapatos

Imagem: Mermaid (2023), de One Design Studio