Haja coração

Quantos seguidores deve ter um advogado, um personal trainer ou um escritor para ser considerado bom? Dia desses, uma amiga médica contou ter recebido uma nova paciente. Marcara a consulta por indicação de alguém, mas se mostrava ressabiada, porque a cardiologista “não é muito famosa no Instagram, né, doutora?”.

O exemplo corrobora a impressão de que a excelência profissional tem se verificado cada vez menos pelos títulos acadêmicos e tempo de experiência, e mais por números superlativos na internet. Dentista sem canal no YouTube não faz boa obturação, economista sem conta no LinkedIn não sabe onde aplicar bem o dinheiro e padeiro que não faz dancinha no TikTok não é ninguém na fila do pão.

Não duvido de que haja excelentes quadros entre os influencers, assim como há profissionais competentíssimos que passam longe do estrelato virtual. Eu, particularmente, ainda procuro um cardiologista pela capacidade de interpretar um eletrocardiograma, mas há quem prefira alguém hábil em publicar, acumular curtidas e amealhar seguidores nas redes sociais. Tempos modernos: a fama fulminante vale mais do que evitar um infarto.

Imagem: Heartbeat medical stretched, de Sovereign Institute

Um doce para quem adivinhar

Sete anos. Segundo uma teoria muito difundida pela internet, mas de credibilidade incerta, nosso paladar muda a cada ciclo destes. Embora desconfie do número cabalístico, tenho percebido uma mudança significativa nas minhas preferências gastronômicas, sobretudo em relação ao doce.

Quando mais novo, não havia dúvida na hora da sobremesa: qualquer uma de chocolate. Quanto mais açúcar, melhor! Agora, dá-se quase o oposto: o cacau perdeu o protagonismo e, na maioria das vezes, é a última opção do cardápio.

Doces frutados, azedos ou mesclas com salgados (caramelo e queijo, que delícia!) ganham cada vez mais a minha simpatia. O chocolate, quando aparece, vem em versões amargas ou combinado com frutas. No atual setênio (sim, essa palavra existe!) em que me encontro, estou viciado em chocolate com laranja.

E daqui a sete anos, qual vai ser?

Imagem: Choux de chocolate com laranja (2023)

Clube dos tímidos

Meu amigo Felipe resolveu vencer a timidez com graça. Ato literal: matriculou-se em um curso de stand-up comedy. Admiro a coragem de escrever um texto e subir em um palco de cara limpa para fazer a plateia rir.

Quando ele me contou do curso e do quanto tem gostado, confesso ter ficado um tanto interessado. Costumava escrever textos com humor na adolescência e haicais com alguma dose de graça. Talvez conseguisse reativar essa verve cômica com as técnicas ensinadas.

Recuei muitos passos, porém, na última semana. Fui assistir a um espetáculo no qual Felipe faria uma participação. A sala era pequena. Escolhi uma cadeira colada à parede, a uma distância média do palco, para evitar qualquer possibilidade de interação.

O comediante principal da noite, de quem nunca tinha ouvido falar, é do tipo que gosta de brincar com o público, construindo piadas (e uma intimidade quase indiscreta) na base da conversa. Foram longos minutos nutrindo essa relação antes que ele entrasse no roteiro propriamente dito.

Por sorte, pela localização estrategicamente escolhida ou pela ânsia de outras pessoas em participar, eu escapei ileso. Respirei aliviado, embora ainda suasse frio, quando a luz da plateia se apagou.

Mais para o fim, Felipe foi convidado a subir no palco, já com o público relaxado e mais receptivo. Torci para que desse nova prova de que vencia a timidez com bravura e competência.

Como prenunciaram os risos, um termômetro bem mais fiel do que minha opinião nada isenta, Felipe foi aplaudido no fim, não só por cortesia, mas porque foram boas as piadas sobre relacionamento, família e mercado de trabalho.

Fiquei feliz por ele, mas bem menos inclinado a seguir seus passos. Não tenho a coragem necessária para encarar um palco desfiando uma série de piadas. Deve ser mágico levar as pessoas às gargalhadas. Penso, porém, no oposto: e se o público reagir apenas com bocejos de tédio? Como um bom tímido, prefiro – por enquanto – manter meu lugar em um cantinho da plateia, a salvo de qualquer interação.

Foto: Timidez (2023)

Montanha-russa

Descobri recentemente que gosto de montanha-russa. Não vai aqui nenhuma metáfora. Há analogias suficientes na internet para quem estiver disposto a encontrar. Falo do brinquedo propriamente dito, de subidas íngremes, quedas vertiginosas, curvas acentuadas e voltas de ponta-cabeça.

Lembro-me de um jogo de computador muito famoso no início da minha adolescência cujo objetivo era ser bem-sucedido como administrador de um parque de diversões. Embora o escopo fosse muito amplo, o que me motivava a jogar era construir montanhas-russas. Da escolha do tipo (madeira ou ferro?) ao traçado da rota, passava longas tardes testando circuitos e o sistema cardiovascular dos visitantes virtuais. Quando eu abusava dos loopings, eles passavam mal a ponto de vomitar na saída. Ainda assim, as filas eram tão enormes quanto o valor que eu poderia cobrar pelo ingresso.

Como no jogo, o sucesso de um parque de diversões real está muito associado à qualidade e à variedade de suas montanhas-russas. Das menos às mais radicais, sempre há um público ávido por cada uma delas, disposto a esperar muito tempo – horas até – por não mais que dois ou três minutos de emoção intensa.

Descobri na prática que faço parte deste grupo, contrariando uma memória que tinha da infância. Quando eu tinha uns dez anos, uma amiga do condomínio comemorou o aniversário em um parque de diversões (hoje já extinto). A principal atração, claro, era uma montanha-russa. Cismei de ir. Julgando que eu seria barrado pela altura, minha mãe esperou comigo na fila, mas deu azar: eu era alto o suficiente. O desespero dela foi ainda maior porque, no carrinho atrás do nosso, a filha da vizinha gritava durante todo o percurso que estava caindo.

Algum trauma daquela época deve ter ficado, o que explica meu longo hiato distante de montanhas-russas. Mas, na última viagem de férias, um parque de diversões fazia parte do roteiro e era absolutamente incontornável tentar ao menos fazer as pazes com este tipo de brinquedo. Cinco ou seis estavam disponíveis. Fato é que gostei de todas, a ponto de repetir duas ou três delas, enfrentando com bom-humor a espera em pé na fila.

Eu, que dizia não gostar de montanhas-russas, já penso nas próximas em que irei. O mundo dá voltas. Às vezes, em looping.

Imagem: “Rollercoaster-4” John Sloan Style, de Paul Silva

Poucas palavras

Perdi as contas de quantas vezes escrevi e apaguei o início deste parágrafo. Nenhuma ideia me parecia boa o suficiente, digna de ser lida. Algumas vezes, é preciso poupar o leitor de um texto enfadonho sem propósito. Em outras, quem escreve poupa a si mesmo de um vácuo criativo de palavras.

Insisto por teimosia, vaidade ou ambas as coisas, porque uma não exclui a outra. Há uma certa indignidade em parir uma crônica a fórceps, mas há também beleza em fazer brotar uma semente fértil de um solo seco de inspiração. O copo meio vazio é o mesmo copo meio cheio, só depende da perspectiva.

Imagem: Glass of water with bowl scraped off (2020), de Ben Madeska