a sós no quarto
rezo um terço
para encontrar um meio
de não ser mais um
Imagem: O quarto (1888), de Vincent Van Gogh (1853-1890)
a sós no quarto
rezo um terço
para encontrar um meio
de não ser mais um
Imagem: O quarto (1888), de Vincent Van Gogh (1853-1890)
Um vento balança a folhagem
ouço o assobio que vem da mata
sei que é ele, só pode ser:
Saci Pererê
Deve preparar alguma astúcia
e chegar no redemoinho
espera, talvez, o cair da noite
e o silêncio da casa para agir sozinho
Vem com frequência a estas bandas
perturbar o sono da sinhá
com traquinagens mil
Deixo a porta aberta para que entre
e brinque até ficar saciado.
Que seja ele a rir da cara deste Brasil.
Poema livremente inspirado no episódio Folclore moderno, do podcast Rádio Novelo Apresenta.
Imagem: Aparição do Saci urbano (2016), de Thiago Vaz
Como o sol que amanhece sem vontade de brilhar,
as ondas se espreguiçam calmamente na areia
e esticam os dedos de espuma branca até os pés.
A brisa gelada emaranha os cabelos,
cospe a areia fina em pernas cansadas.
Aviões teimam em decolar e pousar,
quebram o quase silêncio de inverno.
As turbinas potentes não abafam
o bater das asas dos pombos
que voam à procura dos restos de ontem.
Poucos banhistas arriscam um mergulho
e os surfistas dão descanso às ondas.
Só quem muito admira o mar
supera a névoa da alvorada.
O vento traz de longe a ladainha
palavras duras de uma senhora prestes a desencarnar
que arrasta o peso da vida em sacolas cheias de mágoa.
Pragueja a má sorte e as escolhas ruins,
espalha no ar uma infelicidade fria.
Alheio a buzinas de carros na avenida,
um barco de pescadores persegue um horizonte
no qual o azul do mar se confunde com o do céu
onde os peixes voam em vez de nadar.
Resiliente, a pequena embarcação vence as ondas
e vai sumindo no infinito.
Remos de canoa havaiana em ritmo sincopado
rasgam a linha da superfície.
Braços fortes vencem a resistência da água
às custas de um suor mais salgado que o mar.
Enquanto poucos correm
e quase ninguém caminha,
sento-me na amurada para escrever o poema.
Transbordo no papel
o que vejo, ouço e invento
de uma manhã comum de inverno.
Foto: Manhã de inverno (2023)
há que partir
desfazer amarras da casa
e a segurança dos pais
despedidas são inevitáveis
quem parte
leva um pouco de quem fica
e deixa um pouco de si
partir é também ficar
há que partir
para ser livre
alçar novos voos
traçar um caminho próprio
quem parte cresce
há uma linha imaginária
separando os meninos dos homens
Imagem: The terminus, Penzance Station, Cornwall (1925), de Stanhope Alexander Forbes (1857-1947)
quando não penso em ti, penso em nós
não sei se volto para a última vez em que nos vimos
ou avanço para quando nos veremos de novo
quero dizer que te amo
de um jeito que não pareça simples
há tanto amor em mim
bastante não é muito
e muito não é o bastante
faltam palavras
(invento-as eu?)
para traduzir teu sorriso
em sílabas tão perfeitas
quanto a tua pele nua
quero gravar na memória
que tudo em mim é amor
e eu sou todo teu
Imagem: O beijo (1907-1908), de Gustav Klimt (1862-1918)
Porque o melhor lado é o dentro
Por Maíra Donnici
Gosto de brincar com as palavras.
Projeto Literário