Manhã de inverno

Como o sol que amanhece sem vontade de brilhar,
as ondas se espreguiçam calmamente na areia
e esticam os dedos de espuma branca até os pés.
A brisa gelada emaranha os cabelos,
cospe a areia fina em pernas cansadas.

Aviões teimam em decolar e pousar,
quebram o quase silêncio de inverno.
As turbinas potentes não abafam
o bater das asas dos pombos
que voam à procura dos restos de ontem.

Poucos banhistas arriscam um mergulho
e os surfistas dão descanso às ondas.
Só quem muito admira o mar
supera a névoa da alvorada.

O vento traz de longe a ladainha
palavras duras de uma senhora prestes a desencarnar
que arrasta o peso da vida em sacolas cheias de mágoa.
Pragueja a má sorte e as escolhas ruins,
espalha no ar uma infelicidade fria.

Alheio a buzinas de carros na avenida,
um barco de pescadores persegue um horizonte
no qual o azul do mar se confunde com o do céu
onde os peixes voam em vez de nadar.
Resiliente, a pequena embarcação vence as ondas
e vai sumindo no infinito.

Remos de canoa havaiana em ritmo sincopado
rasgam a linha da superfície.
Braços fortes vencem a resistência da água
às custas de um suor mais salgado que o mar.

Enquanto poucos correm
e quase ninguém caminha,
sento-me na amurada para escrever o poema.
Transbordo no papel
o que vejo, ouço e invento
de uma manhã comum de inverno.

Foto: Manhã de inverno (2023)

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